Terça-feira, 20 de Março de 2012

AS ILHAS DE QUERIMBA OU DE CABO DELGADO. SITUAÇÃO COLONIAL, RESISTÊNCIAS E MUDANÇA. 1742-1822. INTRODUÇÃO I

 

 

 INTRODUÇÃO

 

As razões que  levaram a escolher as Ilhas de Querimba e terras firmes adjacentes para tema de uma dissertação de doutoramento, embora ligadas a interesses de natureza prática, assentaram, essencialmente, na curiosidade científica por uma realidade sócio-cultural típica, ainda por estudar.

 

O autor deste trabalho, durante a permanência de 15 anos em Moçambique, teve a rara oportunidade de contactar com múltiplos grupos étnicos e a percepção da especificidade de algumas das suas instituições sociais e valores culturais ainda que, por vezes, ocupassem espaços geográficos próximos. A diferenciação tornou-se mais acentuada e evidente no norte do território moçambicano, designadamente, nos distritos (hoje províncias) de Moçambique, Nyassa e Cabo Delgado quando observámos as populações de etnia makhwa, tanto as do interior como as do litoral, que apresentavam significativas variações no etno-estilo ou estilo de vida.

 

Entre essas populações, cuja fé não assentava nos mesmos credos religiosos, verificou-se que as populações islamizadas de Murrupula, Nampula ou Vila Cabral (como então se designava a capital do distrito do Nyassa) (terras do interior) se distinguiam, claramente, das populações islamizadas de Moma, Angoche, Mogincual, ilha de Moçambique, Cabaceiras/Mossuril, Mecúfi, Pemba, Quissanga, Ilhas de Querimba, Macomia, Mocimboa da Praia ou Palma/Thungi (terras do litoral).

Por outro lado, também se constatou que entre as ditas populações islamizadas do litoral norte moçambicano existiam algumas diferenças na sua maneira de agir, sentir e pensar, mais evidentes à medida que fomos conhecendo mais profunda e sistematicamente o povo mwani que povoava algumas das ilhas de Querimba e as suas terras firmes adjacentes sediadas entre a baía de Pemba e o rio Rovuma. Este povo com língua própria (kimwani) e um modo de estar na vida muito sui generis que permitiam distingui-lo e aproximá-lo tanto dos restantes povos islamizados da costa moçambicana como dos povos islamizados, de língua kiwahili da costa oriental de África.

 

Os primeiros contactos directos com esta realidade eco-sócio-cultural tiveram lugar entre 1967, data em que passou a desempenhar, no distrito de Cabo Delgado, funções de chefia e 1974, contactos que se multiplicaram à medida que aumentava a nossa curiosidade e faltavam as respostas para a satisfazer. Até Maio de 1969, sobrevoou-se dezenas de vezes o dito território insular e continental que possibilitou um conhecimento bastante aproximado sobre: a situação geográfica da área e de cada ilha em relação às outras, ao litoral e ao oceano; a dimensão das ilhas e ilhéus; os acidentes geográficos; a organização do espaço, designadamente distribuição das populações humanas e dos tipos de vegetação mais típicos (enormes mangais e palmares, floresta e savana).

Durante esse lapso de tempo, teve, também, a oportunidade de visitar a ilha do Ibo, Quissanga, Macomia, Quiterajo, Mocimboa da Praia e Palma, e conversar com os moradores idosos dessas várias localidades sobre a história social e cultural daquelas terras.

Nestes fugidios e espaçados contactos o que mais despertou a atenção do responsável por estes estudo foram a vila do Ibo e as ruinas de grande parte da sua zona urbana, os acentuados traços de mestiçagem da população e a singularidade dos padrões de cultura que tipificava o seu modo de vida.

 

Ilha do Ibo. Ruinas de uma antiga residência. CB.1970

 

Os grandes edifícios, muitos assobradados e apalaçados, construídos a pedra e cal, as fortificações militares e os templos sagrados como igrejas, capelas e cemitérios de família, mesquitas e os cemitérios destinados aos mortais dos vários credos religiosos, reforçavam os testemunhos dos nossos informadores qualificados que havíamos entrevistado informalmente e de algumas fontes escritas consultadas. Uns e outras apontavam para a existência, desde um passado longínquo, de uma elite local, dirigida pelos denominados mozungos, que vivera à custa do comércio de escravos e, socialmente, se afirmara através do ócio e da ostentação, ficando célebres, na segunda metade do século passado, os grandes banquetes, os bailes de gala, os saraus musicais e as donas, sinharas ou sás do Ibo que se distinguiram pela sua excepcional beleza, enjoiamento e poderosa influência que exerceram junto da família, da comunidade local e das autoridades coloniais.

 

Por esta realidade sócio-cultural, que já pertencia ao passado, perpetuada "biologicamente pelos filhos e espiritualmente pelos novos costumes, crenças e interdependências sociais"[1], se interessavam centenas de visitantes, nacionais e estrangeiros, que visitavam o arquipélago, muitos dos quais cientistas de vários ramos do saber que, numa e mais ilhas, procuravam, de relance, investigar e recolher dados sobre aspectos das suas gentes e culturas. Do facto deu-se conta, entre 1969 e 1972, período em que, por motivos profissionais, fixámos residência na vila do Ibo. Desde a chegada a esta ilha, ao saber desinteressado veio juntar-se a necessidade de investigar com uma finalidade, essencialmente prática, relacionada com uma crescente procura de informação por parte dos visitantes e com o bem-estar das populações locais.

 

Durante a nossa estadia nas Ilhas recebeu-se a visita muitos estudiosos (antropólogos, historiadores, geógrafos, biólogos e professores universitários)[2] que, para além de fornecerem preciosas informações sobre o estado da ciência e dos seus projectos de investigação, incitaram à produção de um trabalho[3] sobre a história social e cultural das Ilhas de Querimba, indispensável, defendiam, para colmatar a falta de estudos sistemáticos nesta parte setentrional do território moçambicano.

 

A solução de alguns problemas que afligiam as populações da zona suburbana da ilha do Ibo, relacionados com arruamentos, habitação e iluminação pública, contribuiu, igualmente, para a intensificação dos trabalhos de campo, particularmente a recolha de dados relacionados com um conhecimento sistematizado da situação social dos seus habitantes.

 

Estava assim justificada uma abordagem científica da experiência colonizadora desenvolvida nas Ilhas, desde há séculos, por árabo-suaílis e europeus, especialmente, portugueses. Deu-se-lhe início, mas ficou longe de a completar em virtude da sua complexidade e de, por razões profissionais, ter deixado Moçambique. Com o regresso definitivo a Portugal continental verificado em 1974, o interesse por aquela realidade social, longe de esmorecer, redobrou de intensidade ao constatar-se que a larga experiência e a informação recolhida durante o trabalho de campo e em arquivos em Moçambique, para além da sua validade científica, merecia a atenção de estudiosos e instituições ligados a temas africanos. Comprovam-no inequivocamente as dezenas de comunicações apresentadas na Sociedade de Geografia (secções de História, Etnografia e Antropologia), em Centros de Estudos Africanos, Seminários, Simpósios e Colóquios.

 

Apesar da participação, em todo o País, entre 1977 e 1983[4], em vários projectos de investigação e desenvolvimento e do acervo de material que eles poderiam disponibilizar para o efeito, seriam a amizade e a ligação às gentes das Ilhas e a sua ajuda nunca negada, a influenciar a escolha definitiva do tema da dissertação defendida, publicamente, em 1994.

 

O objecto do presente trabalho é a situação colonial instituída pelos Portugueses nas Ilhas de Querimba e terras firmes adjacentes, sendo a preocupação do seu autor conhecer e compreender a dinâmica e a lógica internas do seu sistema social e as mudanças diversas verificadas ao longo do tempo como resultado de vários factores de natureza tanto endógena como exógena.

 

A concretização do estudo, para além da contribuição para a história da colonização portuguesa, reveste-se de significativa importância para Moçambique, na medida que poderá servir para apoiar futuros modelos e estratégias de desenvolvimento e para a comunidade científica internacional, pelas razões, seguidamente, aduzidas.

 

O arquipélago das Querimbas, com mais de quatro dezenas de pequenas ilhas, integra-se num vasto conjunto insular, situado na costa leste de África, entre Sofala e Guardafui, que, desde há dezenas de séculos, serviu de palco privilegiado para contactos de povos e de culturas ou civilizações[5] e um espaço propício a transformações bio-culturais e sociais. Para esta extensa região costeira, por razões de natureza económica, política e religiosa, convergiram fluxos migratórios provenientes do Oriente, Ocidente e da própria África que, através de consecutivos cruzamentos inter-genéticos e de uma permanente interpenetração de culturas, estiveram na génese e florescimento da denominada civilização suaíli e das suas variantes, aliás, observadas e descritas a partir dos finais do século XV pelo primeiros navegantes portugueses que sulcaram as águas do Indico. Uma grande parte das ilhas deste vasto conjunto e as suas realidades sócio-culturais, já mereceram a atenção dos estudiosos. Entre as excepções encontram-se as Ilhas de Querimba, onde se gerou e desenvolveu a comunidade dos Wamwani portadores de uma cultura e língua (o Kimwani) próprias que, para além de algumas abordagens parcelares, nem sempre pautadas pela objectividade e rigor científico, ainda não tinham suscitado, até 1974, a curiosidade dos cientistas dos vários domínios do social, lacuna que tem sido assinalada por vários cultores da história de África.

 

Depois da independência de Moçambique temos conhecimento que vários investigadores[6]se têm preocupado com a realidade presente das Ilhas, respectivas populações e seus modos de vida.

 

Deste modo, toda a investigação que tenha por objecto as ditas Ilhas e as suas gentes constituirá um valioso contributo para compreender a sociedade suaíli e os seus sub-grupos e esclarecer o significado e a função das suas experências nos vários domínios da sua realidade sócio-cultural, antes e durante a permanência dos Portugueses nesta parte de África.

 

Com esta abordagem, com base no conhecimento pessoal que possui do território e das suas etnias e nas fontes - pessoas e documentos, especialmente escritos -, o seu autor propõe-se descrever e interpretar sistematicamente: a toponímia do território e das suas partes e as alterações temporais verificadas; a interacção entre os diferentes ecossistemas (aquáticos, terrestres e humanos) e os fenómenos sócio-culturais, dando especial relevo aos principais factores ecológicos responsáveis pelos padrões ambientais do território que serviram de suporte às diversas actividades humanas, que condicionaram, e às biocenoses existentes; o ambiente sócio-cultural indico-africano observado pelas armadas portuguesas, cujo conhecimento é indispensável para a explicação dos problemas sócio-económicos e políticos levantados pela presença lusíada no Oceano Indico e para compreender, com mais precisão, o funcionamento e a lógica interna do sub-sistema social constituido pelas Ilhas; as inter-relações entre as diversas realidades sócio- políticas e económicas sediadas nas terras firmes, especialmente povoadas por povos de etnia Mmakhwa independentes do poder colonial e a realidade sócio- cultural constituida pelas Ilhas, e o papel das primeiras na génese da segunda e no desenvolvimento das suas trocas comerciais; o conjunto de estruturas (demográficas, económico-sociais, político-jurídicas e religiosas) que as autoridades coloniais utilizaram para consolidar a conquista política, incrementar a exploração económica e difundir o Cristianismo, isto é, para imporem a sua totalidade social a outra totalidade social com base num sistema de relações sociais desiguais, e a influência dessa intervenção na estrutura e funções das instituições sociais, tanto da sociedade em situação colonial como das sociedades vizinha das terras firmes não integradas nos prazos da coroa; os problemas mais significativos relacionados com os aspectos estruturais e organizativos do sector económico, designadamente os ligados com os prazos da coroa, propriedade e exploração da terra; a natureza das rotas oceânicas e das redes comerciais, as trocas comerciais, agentes, bens transaccionados, tráfico de escravos e o seu impacto nas estruturas demográficas, produtivas e políticas nas referidas sociedades e meios de pagamento; as relações estabelecidas entre cristãos e maometanos e as dinâmicas do Islamismo e do Cristianismo, perante as realidades sócio-culturais bantus, com relevo para o papel dos Dominicanos como intervenientes activos da colonização portuguesa e para a difusão da religião islâmica; as situações de convivência, cooperação, conflito, contestação e resistência, estas três últimas, geradas como resultado da intervenção do colonizador e da imposição de novos valores e expectativas contrárias aos interesses de uma aristocracia dominante de comerciantes, tanto naturais, como estrangeiros.

 

Um dos pontos principais a realçar nesta abordagem é o de que, apesar dos seus escassos recursos humanos e materiais, da debilidade e falta de operacionalidade das estruturas político-administrativas, económicas e religiosas de apoio implantadas, que colidiam com os interesses da elite local, de um comércio internacional - continental e intercontinental - quase todo ele clandestino, praticado por estrangeiros e moradores, e dos ataques perpetrados por povos vizinhos (Makhwa e Sakalava), os Portugueses permaneceram e mantiveram o seu domínio colonial, na parte mais setentrional do território moçambicano, graças a uma política concreta, espontânea, de miscigenação, adaptação, integração e convívio pluri-étnico, respeitadora da natureza étnica e dos diferentes valores humanos das sociedades afectadas pela colonização. Estava-se perante uma complexa realidade sócio-cultural gerada e desenvolvida, por vezes, à margem das contingências do poder político colonial como resultado da laicização e das novas estruturas da família, de intervenções vindas do exterior, do aparecimento de novas "emergências conciliadoras", "dos triunfos dos modelos criados pelas várias respostas humanas ao desafio de viver"[7], e do jogo dos processos e dos factores de mudança e suas implicações, aí gerados ao longo do tempo.

 

Outro ponto relacionado com o anterior refere-se ao comércio internacional praticado nas Ilhas que teve papel decisivo: no empobrecimento e abandono da agricultura; na decadência dos prazos e na ajuda dos foreiros à administração colonial, cada vez com menos prestígio; no comércio com o interior e relacionamento dos comerciantes com as autoridades políticas das chefaturas das terras firmes não subordinadas ao poder político colonial; na quebra demográfica; na eclosão de conflitos armados contra o território provenientes do exterior; perda de influência do cristianismo e seus representantes e crescente aumento da influência do islamismo; na eclosão de rebeliões e "levantamentos" de individualidades locais pertencentes às principais famílias dominantes.

 

Definidos o objecto e os objectivos da presente dissertação, torna-se necessário proceder à delimitação temporal da realidade social a estudar. Que período deverá abarcar? O compreendido entre 1523 (reconquista das Ilhas pelos Portugueses) e 1975, data da extinção da situação colonial? Ficará limitada a um período mais curto e recente circunscrito à nossa estadia em terras de Cabo Delgado, que teve lugar entre 1967 e 1974? Ou considerar-se-á outro período diferente destes dois?

 

 

 A opção a tomar estava dependente dos tipos de fontes e de observação utilizados na recolha de dados.

 

Numa primeira fase do estudo, de acordo com a informação fornecida pelo trabalho de campo efectuado, pareceu que seria possível optar-se pelo período correspondente à sua presença nas Ilhas. No entanto, iniciada a pesquisa documental, indispensável para conhecer os factos antecedentes e explicar essa realidade, constatou-se a existência de grande abundância - qualitativa e quantitativa - de documentos escritos que, para a sua observação, crítica e análise, exigiam um tempo demasiado longo - mais de 10 anos -, prazo que dificilmente poderia cumprir-se, dada a sua já avançada posição no ciclo de vida. Rejeitada esta primeira hipótese, que assentava essencialmente nos dados recolhidos na pesquisa de campo, complementados por informação documental, tivemos de escolher outra alternativa cuja base assentou nos documentos como fontes de dados, agora apoiados, na sua explicação, por testemunhos recolhidos através da observação directa intensiva. No leque das especializações previstas pelo nosso Instituto, nos doutoramentos em Ciências Sociais substituímos a especialização em Antropologia Cultural pela de História dos Factos Sociais. Face aos condicionalismos temporais há pouco referenciados limitou-se o universo do estudo a um período que fica compreendido entre 1742 e 1822. A escolha deste e não de outro ou outros períodos anteriores ou posteriores, deve-se: à maior escassez de documentos escritos antes de 1742, facto que tornava a pesquisa mais morosa e menos adequada ao tempo disponível; o seu início em 1742 está ligado ao crescente aumento do comércio clandestino incrementado, especialmente, pelos comerciantes franceses, que iria provocar significativas mudanças tanto a nível das diferentes estruturas da sociedade em situação colonial como no estilo de vida dos seus habitantes livres e escravos. Para contrariar tão nefasta prática comercial e os graves prejuízos que ela provocava aos cofres régios, mandava-se para o território, em 1742, um Capitão-Mor com um Regimento e uma pequena força militar. A escolha do ano de 1822 para fechar o referido universo temporal relaciona-se com dois eventos - a proximidade do final das hostilidades dos Sakalava que durante quase duas décadas saquearam o território e a entrada em vigor da primeira Constituição Portuguesa nascida do liberalismo - constituindo, particularmente, o primeiro facto um importante factor de mudança que provocou profundas alterações nas funções e na estrutura das várias instituições sociais estabelecidas e na fuga das famílias mistas mais prestigiadas e de maior influência no seio da situação colonial e junto das autoridades independentes sediadas nas terras firmes.

 

Outra preocupação que nos mereceu cuidada atenção relaciona-se com os conceitos [8] utilizados, com finalidade científica, na orientação da investigação, designadamente, na classificação, comparação e explicação dos dados recolhidos através da observação. Os cientistas sociais neste domínio empregam como instrumentos de trabalho conceitos operacionais[9], conceitos descritivos ou analíticos[10], definições operacionais[11], conceitos valorativos e quase- conceitos[12], dependendo a utilização de uns em detrimento de outros, do "estilo" e da "postura científica"[13] e da metodologia de cada observador em relação à "multidão de observações"[14] que a realidade social e histórica lhes oferece e ainda do nível de desenvolvimento atingido por cada ciência social e respectivos quadros teórico e conceptual.

 

Entre os vários conceitos que as Ciências Sociais, especialmente a Antropologia e a História, têm usado ao estudarem as sociedades submetidas ao domínio europeu, salientam-se os de "colonização científica"[15], "choque cultural", "contactos de cultura", "aculturação"[16], "mudança social" e "situação colonial". Nos anos 30 do presente século a colonização não era ainda considerada como "destruição e desculturação das sociedades não ocidentais" e "etnocídio", mas tão somente "como aculturação ou mudança cultural"[17], tendo, nos países colonizados, os trabalhos consagrados à abordagem desta última variável redobrado de intensidade após a Segunda Guerra Mundial.

 

Os antropológos americanos, ao contrário dos ingleses, que preferiram utilizar o termo "contacto de culturas", falam em "aculturação",como fenómeno global, sempre que dois povos entram em contacto e as respectivas culturas se pautam pela desigualdade, designadamente em relação às tecnologias que cada um dispõe, conceito que aparece, algumas vezes, com um conotação negativa em consequência do sofrimento que este processo social provoca no povo que é portador e se integra no quadro cultural menos complexo[18].

 

Depois de M. Herkovits, Robert Redfield e Robert Linton, muitos outros estudiosos[19] se debruçaram sobre a análise da aculturação como fenómeno geral. Coube àqueles três antropólogos americanos a elaboração, em 1936, de um Memorandum cujos princípios passaram a orientar a pesquisa neste domínio do social. O documento, para além de aferir o conceito, delimitava o campo de acção do trabalho, ao qual podia ser aplicado. Afirmava-se, então, ser a aculturação "o conjunto de fenómenos que resultam do contacto de um grupo de indivíduos de culturas diferentes entrarem em contacto contínuo e directo e das mudanças que se produzem nos padrões culturais originais de um dos grupos ..."[20]. Acrescentava-se, de seguida, haver necessidade de distinguir a aculturação da mudança cultural, a qual não passa de um dos seus aspectos, da assimilação que representa apenas uma das suas fases e da difusão, processo social que pode ocorrer sem que se produzam os tipos de contactos entre os povos, especificados, da qual a aculturação é apenas uma das suas vertentes. Apesar do Memorandum ter precisado a sua significação, o termo aculturação tem sido utilizado, não só com um significado mais geral muito próximo do da difusão, entendendo-se o primeiro como "o estudo da transmissão cultural em marcha" e o segundo como "o estudo da transmissão cultural consumada", como também usado de "modo diferente por diferentes disciplinas"[21], com um sentido próximo dos conceitos de socialização e de enculturação[22]. Para Jorge Dias aculturação é o estudo de um tipo especial de difusionismo caracterizado pela violência do processo[23].

Na perspectiva de Melville Herskovits, que, neste trabalho se perfilha, "a transmissão da cultura, processo de mudança cultural do qual a aculturação é apenas uma expressão, ocorre quando dois povos quaisquer têm contacto histórico respectivo". Quando um grupo, por ser maior ou estar tecnologicamente melhor equipado do que o outro, obriga, se necessário com a utilização do uso da força, à mudança nos modos de vida de um povo conquistado, pode-se chamar o que governa o grupo "dominante"[24]. Neste caso, independentemente da natureza do contacto, o resultado da interpenetração de culturas envolve e compromete a totalidade social e não apenas uma das realidades sócio-culturais em presença[25] e dá lugar, por parte do grupo "dominado" à reinterpretação cultural[26], que visa a integração dos novos traços culturais, através da padronização, na cultura receptora e ao aparecimento de movimentos de reacção e de contestação.

 
(Continua)

[1] - MOREIRA, Adriano, Ensaios ..., p. 71.

[2] - Recordam-se entre outros: um grupo de antropólogos, chefiado pelo Prof.Sepp Matzenetter (Univ. Frankfurt); Prof. Pierre Verin (Museu de Madagascar); Prof. P. K. Huibregtse (holandês); um grupo da National Geographic, chefiado pelo Dr. Wentzel; o Prof. Vasco Fortuna; o Prof. Alfredo Fernando Martins (geógrafo, da Universidade de Coimbra); os Drs. Alexandre Lobato e Alberto Iria (historiadores); um grupo de biólogos de Missão Bio-Oceanográfica, constituido pelos Drs. Caixeiro e Filipe; o Dr. Amaro Monteiro, arqueólogo; o arquitecto Quirino da Fonseca da Comissão dos Monumentos Nacionais; o Dr. Sá Machado da Fundação Calouste Gulbenkian; e um grupo de alunos de medicina de Lourenço Marques (hoje Maputo), acompanhados pelo Prof. Forjaz Sampaio.

[3]Trabalho entendido como todo e qualquer estudo científico produzido a partir das fontes e relacionado com o objecto de pesquisa. Por fonte entende-se todo e qualquer documento directamente relacionado com o objecto de estudo. Para mais pormenores consultar CERVO, A. L.e BERVIAN, P. A, Metodologia Científica. São Paulo, 1983, p.p. 79 e 80.

[4]Ver: - NETO, João Baptista Nunes Pereira - "Desenvolvimento e Mudança Cultural". In Revista de Estudos Políticos e Sociais, 1988, Vol. XV, nºs 1 e 2, p.p. 55 e 63.

[5] Civilização entendida como uma especialização da cultura, ligada ao fenómeno da urbanização, materializada num relativo progresso das ciências, das artes, da religião, da política, dos meios de expressão e circulação das ideias.A cultura respeita à criação e obras do Homem, e na perspectiva de Jorge Dias para o antropólogo moderno é a herança social transmitida de geração em geração através de processos sociais (enculturação e socialização) e não genéticos (TITIEV, Mischa, Introdução à Antropologia Cultural, 1966, p. 10). Diogo Moreira, entende-a como "um conjunto complexo de normas, valores, comportamentos e realizações materiais que diferenciam as comunidades humanas" ("Reflexões sobre o conceito de Cultura", 1987, p. 461). Sobre a distinção entre civilização e cultura consultar também BERNARDI, Bernardo, Introdução aos Estudos Etno-Antropológicos, p.p. 30-33; BRAUDEL, Fernand, História e Ciências Sociais, p.p. 90-133; e PANOFF, Michel e Outro, Dicionário de Etnologia, 1973, p. 49, em que se chama a atenção para o facto do conceito de cultura ser, em muitas obras etnológicas, sinónimo de etnia, sociedade ou de civilização. A distinção entre sociedade e cultura, por se considerar não existirem grandes diferenças entre elas, é cada vez menos tomada em conta pelo maior parte dos antropólogos.

[6] - Recordam-se entre outros: A Prof. Joana Pereira Leite, Rafael da Conceição, Ana Loforte e Aurélio Rocha. Também uma equipa de holandeses vive no Ibo, há vários anos, onde está a preparar uma gramática de kimwani. A dissertação de doutoramento de Nancy Hafkin - Trade, Society and Politics in Northern Mozambique, c. 1753-1913, embora refira o norte de Moçambique como objecto de estudo, exclui todo o espaço geográfico compreendido entre Memba e o rio Rovuma, que constitui a parte mais setentrional de Moçambique, onde se situam as Ilhas de Querimba.

[7] - MOREIRA, Adriano - Ensaios ..., cit., p.p. 51 e 70.

[8]  - Trata-se do vocabulário especializado, cujos termos são baseados em abstrações, utilizado pelos cientistas e destinado a identificar e a compreender objectos, processos ou ideias a serem estudados. Mais pormenores encontramo-los em GOODE, W. J.e HATT, P. K. - Métodos em Pesquisa Social. São Paulo, 1960, p.p. 55 e em KAPLAN, Abraham - A Conduta na Pesquisa, 1969, p.p. 37-88.

[9] - Segundo MOREIRA, Adriano - Ciência Política. Lisboa, 1979, p.p. 73 e 115, que citamos, referem-se ao reconhecimento do carácter puramente provisório, tentativo e pragmático das definições a utilizar para a aproximação dos temas, sobretudo, quando o tema é recente e o fenómeno obriga a arrumos mais convencionais do que resultantes da imposição de método.

[10] - Na perspectiva de MOREIRA, Adriano estes conceitos traduzem-se sempre em recortar um sector da realidade, com base em critérios que são discutíveis e em atribuir um nome à realidade autonomizada, constituindo o 1º instrumento da organização da realidade a estudar Ciência Política, cit., p.p. 113-115).

[11] - Respeitam, segundo Peter Mann, ao conjunto de termos claramente designativos de operações realizáveis e observáveis, sujeitos a confirmação. Nas palavras deste autor na definição operacional não existe algo de mágico: ela é simplesmente uma maneira de afirmar claramente em termos observáveis do que se vai falar e a seguir apegar-se a essa terminologia durante toda a pesquisa, Métodos da Investigação Sociológica. Rio de Janeiro, 1974, 4ª Edição, p.p. 33-38). Sobre este conceito consultar também GOODE & HATT -Métodos..., cit., p.p. 70-73.

[12] - Os conceitos valorativos e quase-conceitos foram descritos por MOREIRA, Adriano - "Metodologia Gilbertiana", In Comentários, Lisboa, 1992, p.p. 107-116, ao abordar a construção e o trajecto gilbertianos que dos conceitos descritivos e operacionais passou ao conceito valorativo baseado no luso-tropicalismo para finalmente utilizar como instrumento de trabalho o quase-conceito assente no pressuposto que de os vários elementos da cadeia de fenómenos possuem uma estrutura inacabada, que escapa ao domínio dos conceitos acabados, por ainda não estarem codificados os instrumentos necessários à sua análise.

[13]- MOREIRA, Adriano - "Metodologia Gilbertiana", cit., p. 108.

[14]- Idem, Ibid, p.p. 108 e 109.

[15] - Este conceito surgiu na última década do século passado e tinha como principal objecto o conhecimento das "condições de existência indigena", antes e depois da implantação dos de poder colonial e o seu campo seria construído com a ajuda dos conceitos de mudança social e aculturação. Por colonização entende SILVA CUNHA, em sentido genérico, "o conjunto de actividades que têm por objecto o estabelecimento ou definição de situações coloniais" e em sentido particular "a acção cultural e económica que o Estado metropolitano desenvolve numa certa colónia" Política Indígena, 1955-56, p.p. 59 e 60).

[16] - Os conceitos"choque cultural", "contactos de cultura" e "aculturação" estão ligados à escola difusionista que explicava a colonização como um produto de contactos entre sociedades e como um fenómeno de difusão. O conceito "contacto cultural", preferido pela antropologia inglesa em relação ao de aculturação, significa um processo contínuo de interacções sociais entre grupos culturalmente diferentes. Terá surgido pela primeira vez, no I Congresso Universal de Raças, realizado em Londres, substituindo então o de "missão civilizadora" que apareceu depois da Conferência de Berlim para designar o conjunto de vantagens e proveitos que de toda a empresa colonial advinham para a metrópole (BALANDIER -Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire, 1971, p. 6). Sobre esta temática ver tambémBASTIDE, R. - Antropologia Aplicada. São Paulo, 1979, p. 36 e LECLERC, Gerards -Crítica ..., cit., p.p. 31 e 72.

[17] - LECLERC, Gerards - Crítica ..., cit., p.p. 67 e 173. Sobre o "etnocidio", entendido como a exterminação de um povo e da sua cultura por outro povo, e "desculturação", consultar  De l'Ehtnocide, Paris, 1972, JAULIN, Robert - Gens de Sois, Gens de l'Outre, 1973 e La Paix Blanche, 1974, MOSCOVICI, Serge - La Société contra Nature, 1972, Hommes Domestiques et Hommes Sauvages, 1974 e CAHSAI, Berhane - "Ethno-Développement et Ethnocide en Afrique". In Le Mois en Afrique, Année XIX, February/Mars, 1984, nºs 217 e 218, p.p. 119-128. Sobre as implicações do "imperialismo colonial" nas estruturas sociais tradicionais SURET-CANALE, J. - Afrique Noire ..., p.p. 90-92 e 460, fornece-nos algumas indicações.

[18] - Mais pormenores encontramo-los em NETO, JoãoBaptista Nunes Pereira - Sumário elaborado nos termos do artigo 66° do Estatuto da Carreira Universitária, relativo ao estudo do Dinamismo e à cadeira de Antropologia, ministrada no I.S.C.S.P. no ano lectivo de 1982/83.

[19]- Muitos deles são referenciados em BASTIDE, Roger - Antropologia Aplicada, São Paulo, 1979; WACHTEL, Nathan - "A Aculturação", in Fazer História 1 - Novos Problemas, Lisboa, 1977; LECLERC, Gerards - Crítica da Antropologia, cit.; HERSKOVITS, Melville - Antropologia Cultural, São Paulo, Tomo III, 1963, p.p. 341; e BARÉ, J. F. - "Accultturation". In Dictionnaire de l'Ethologie et ..., 1992, p.p. 2 e 3.

[20]- BASTIDE, Roger, op. cit., p. 36, HERSKOVITS, M., op. cit., p.p. 341 e 342 e SPICER, E. H. - "Acculturation". In Internacional Encyclopedia of the Social Sciences, 1973, Vol. I, p. 22.

[21]- HERSKOVITS, op. cit., p.p. 342 e 344. Para os sociólogos como BROOM, L. e SELZNICK, P. - Elementos de Sociologia, p. 95, HORTON, P. e HUNT, C. - Sociologia, p. 451, a aculturação não é mais do que um processo de difusão cultural. Para muitos antropólogos trata-se do "processo de mistura de elementos culturais, no todo ou em parte, podendo resultar do impacto de um grupo euro-americano numa sociedade primitiva, mas também pode surgir doutra maneira" (TITIEV, M. - Introdução ..., cit., p. 387. Actualmente ainda é empregado com o sentido de enculturação por especialistas de outras áreas científicas, como psicólogos e geógrafos. Consultar: ENGLISH, Horace e Outro - A Comprehensive Dictionary of the Psychological and ..., 1958 e BRUNET, Roger, FERRAS, R. e THERY, H. - Le Mots de la Geographie - Dictionnaire Critique, 1992; ver também NETO, João Baptista Nunes Pereira, op. cit. e Dicionário de Sociologia (Direcção Cazeneuve), p. 73.

[22]- Trata-se de um processo social contínuo que tem lugar ao longo do ciclo de vida e está relacionado com a interiorização dos valores culturalmente estabelecidos por cada grupo, sociedade ou povo. A socialização entendida como a aprendizagem de papéis sociais.

[23]- DIAS, Jorge -Antropologia Cultural, 1956-57, p.p. 157 e 158.

[24]- Op. cit., p. 347. Posição também partilhada por PANOFF, Michel e Outro - Dicionário de Etnologia ..., cit., p. 13 e pela The Social Science Encyclopedia, 1985, p. 7.

[25]- Muitos dos estudos sobre a aculturação são considerados etnocêntricos, por apenas considerarem o impacto da cultura julgada "superior" sobre a cultura por ela modificada, esquecendo as características dos grupos étnicos portadores de influência e da necessidade que existe no conhecimento das transformações operadas nos grupos e culturas em contacto (BASTIDE, Roger, op. cit., p. 77).

[26]- Processo social pelo qual se atribuem novos significados aos antigos valores e os novos valores alteram o significado das formas antigas. Sobre este assunto ver HERSKOVITS, Melville, op. cit., p.p. 374 e 375 e BASTIDE, Roger, op. cit., p. 42.

publicado por ilhaskerimba às 14:20
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